A Tabela Periódica Humana e o Saber Fazer Tradicional

O Ano de 2019 foi proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pela UNESCO como o Ano Internacional da Tabela Periódica (IYPT2019) celebrando assim os 150 anos desde que foi criada pelo químico russo Dimitry Mendeleiev com os 63 elementos conhecidos à data.

A tabela periódica atual é composta por 118 elementos e segundo Carlos Fiolhais

“tudo é feito a partir dos 118 elementos. A tabela é o código de toda a matéria do universo”.

No âmbito das celebrações do Ano Internacional da Tabela Periódica diversas Instituições de Ensino Superior elaboraram no passado dia 29 de janeiro de 2019, em várias cidades, Aveiro, Braga, Castelo Branco, Covilhã, Évora, Faro, Funchal, Lisboa, Porto, Tomar e Vila Real, e em simultâneo, Tabelas Periódicas Humanas.

O Departamento de Química da Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora associou-se a este evento da Sociedade Portuguesa de Química, organizando, com a colaboração da Escola Secundária Gabriel Pereira, a Tabela Periódica Humana em Évora, no Claustro maior do Colégio do Espírito Santo, um dos locais mais emblemáticos da Universidade e da Cidade de Évora!

Cristina Galacho
Membro da comissão organizadora

O saber tradicional e a ciência

O saber fazer fazer tradicional não pode ser visto como um mundo separado do saber científico e técnico. A ciência, e o fazer científico, andam de mão dadas com o desenvolvimento do saber fazer tradicional, em áreas tão diversas como a agricultura, a medicina ou a química.

A criação da tabela periódica pelo investigador russo Dimitry Mendeleiev é um acto de saber e inteligência importante de sublinhar. Da mesma forma o é a evolução dessa representação sistemática dos elementos químicos, que reúne o saber de diversos investigadores dispersos no tempo e espaço e resulta num instrumento de registo da evolução do saber científico.

Filipe Themudo Barata e Natália Melo
Cátedra UNESCO em Património Imaterial

Faróis de Cabo Verde

por João Lopes Filho

“Faroleiros em que cismam

horas longas dos dias e das noites

na sua solidão

entre o céu e o mar?

Com os seus olhos fitos na distância

o que mais querem ver

mais além

da neblina do horizonte?”

Jorge Barbosa

       Na antiguidade acendiam-se fogueiras nas pontas ou sítios altos do litoral como sistemas codificados e referências alertando os navegadores que se aproximavam da costa, constituindo uma ajuda que as gentes da terra proporcionam aos homens do mar. Mais tarde passaram a colocar luzes nos locais mais perigosos para prevenir os mareantes, as quais alimentadas inicialmente de azeite ou óleo de baleia, com a evolução foram substituídos pelo petróleo, também a primeira energia utilizada nos faróis já equipados com aparelhos ópticos de maior alcance e eficácia, que acompanharam o progresso em termos de melhor orientação e apoio à navegação. Entretanto, potenciada pela situação de isolamento, o faroleiro era visto como um agente humanitário, que velava pela luz que guiava o passo aos marinheiros e vivia afastado do mundo, embora desfrutando de uma relação idílica com a Natureza e o seu elemento mar.

       O farol é, pois, uma estrutura elevada, normalmente em torre, dotada no topo de um aparelho óptico, cujo facho de luz é visível a longas distâncias com vista a apoiar os navegantes, pelo que habitualmente são instalados nas zonas litorâneas em posições privilegiadas para a navegação marítima, tendo sido o primeiro de que se tem registo o Farol de Alexandria, construído em 280 a.C. na ilha de Faros (donde derivou o termo farol).

       Destinados a indicar, principalmente durante a noite, o posicionamento aos que navegam, são importantes referentes terrestres a quantos sulcam os oceanos, pelo que, criados há muitos séculos, têm acompanhado a evolução técnico-científica procurando prestar um serviço cada vez mais eficaz no âmbito das comunicações navais.

       Acontece que, devido à sua privilegiada posição geográfica e pela natureza de alguns portos, o arquipélago de Cabo Verde foi desde a expansão marítima europeia um ponto de paragem quase inevitável dos navios a vela (descanso da marinhagem, reparação das embarcações, aguada e receber frescos), passando mais tarde a ser importante escala na época da navegação a vapor, sobretudo, para reabastecimento dos barcos que cruzavam o Atlântico.

       Como navegar entre as ilhas cabo-verdianas implicava estar em permanente estado de alerta, devido aos ventos, correntes e obstáculos junto das costas, associados a zonas de anomalia magnética, acrescidos da limitada capacidade de manobra das embarcações e inexactidão dos mapas, faziam com que muitos barcos naufragassem, de modo que os faróis contribuiriam para tentar evitar os acidentes que se registavam a miúde.

       Estas circunstâncias terão imposto a necessidade da instalar faróis no litoral e portos das ilhas como estratégia para facilitar e auxiliar à navegação nas águas do arquipélago, procurando deste modo minimizar os sucessivos acidentes ao indicar as áreas de risco nas zonas baixas e na entrada dos portos.

       No que concerne à história dos faróis em Cabo Verde, os primeiros terão sido instalados nos finais do séc. XVIII, princípios do séc. XIX, mas aos poucos espalharam-se por quase todas as ilhas do arquipélago. (1)

       Praticamente, até 1880-1881 não havia um único farol em Cabo Verde, se se exceptuarem duas pequenas luzes, uma branca e outra vermelha, ambas de iniciativa privada, que se acendiam no ilhéu de Santa Maria e no porto da Praia, ilha de Santiago. (2)

      Daí que, consciente da importância dos faróis para actividade marítima em Cabo Verde, o Governador-Geral dirigiu, em 15 de Abril de 1879, um ofício ao Ministério e Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar a propósito das obras indispensáveis à então província, alertando para as edificações que julgava prioritárias, com destaque para a necessidade absoluta “de prover a iluminação da archipelago” (3), começando por estabelecer e construir alguns com a finalidade de auxiliarem a navegação.

       Assim, no sentido de satisfazer tais necessidades, por iniciativa da Sociedade de Geografia de Lisboa, através da Comissão de Farolagem e Balizagem, entre 1880 e 1900, planeou-se a instalação de luzes que servissem de guia aos navegantes, no sentido de prover as ilhas de Cabo Verde com um conjunto de faróis, que seriam distribuídos pelas costas e em posições úteis a náutica.

       Posto isto, promoveram a instalação de faróis com diferentes alcances em posições vantajosas para os navegantes, bem como farolins que para indicar a entrada dos portos, apesar da

“penúria em que se vivia no final do séc. XIX, associada às limitações tecnológicas e ainda a uma administração e burocracia retrógradas, adensam os obstáculos e dificuldades impostos pela natureza, transformando em heróis todos os intervenientes na edificação dos faróis. Tal estatuto abarca a difícil e onerosa decisão superior, inclui igualmente a ousada e provada engenharia na modelação de perigosas vias por onde deviam passa gente e material para a construção, equipamento e manutenção dos faróis”. (4)

       Por isso Júlio José Marques da Costa deu a conhecer, em 1890, o conjunto de faróis instalado em Cabo Verde nestes termos:

“Quando o farolamento do litoral e portos de todas as nossas colónias, e das ilhas adjacentes, estiver num estado comparável ao do Arquipélago de Cabo Verde, grande terá sido o serviço prestado à navegação e ao comércio. Fazemos votos de que assim seja em pouco tempo”. (5)

       Igualmente, numa comunicação apresentada aquando da Exposição Universal de Paris, salientava Ernesto de Vasconcelos, em 1900, que o plano de farolagem de Cabo Verde foi executado e completamente realizado a partir de um planeamento adequado e previamente discutido. (6)

       Contudo, a situação relatada não sofreu praticamente qualquer melhoria até 1940, exceptuando a instalação de algumas luzes de sinalização portuária e os normais serviços de assistência e manutenção das instalações já existentes.

       Como resultado, a rede de farolagem do arquipélago apresentava bastantes deficiências em 1973, devido ao facto de os faróis criados em 1880-1894 e aperfeiçoados em 1930-1939 envolverem um número significativo de luzes na altura já inadequadas ao desenvolvimento de Cabo Verde, visto ser dificil a sua identificação nos locais onde existia energia eléctrica, também muitos desses faróis não acompanharam a evolução das embarcações, caso do avanço tecnológico dos barcos a motor e, ainda, por o alcance de algumas luzes ser insuficiente ou as estruturas dos faróis se apresentarem num estado de conservação deficitário, o que reduzia muitas vezes a sua real eficiência. (7)

       Actualmente existem em Cabo Verde cerca de setenta e dois faróis instalados nas diversas ilhas do arquipélago, destinados a ajuda do tráfico aéreo e apoio das actividades marítimas, distribuídos conforme o quadro que se segue:

Faróis existentes em Cabo Verde

                      Ilhas Quantidade
Santo Antão 6
São Vicente 11
Santa Luzia 3
Ilhéu Branco 1
São Nicolau 7
Sal 6
Boavista 9
Maio 5
Santiago 14
Fogo 5
Brava 4
Ilhéus Secos ou do Rombos 1
 Total 72

Fonte: Direcção-Geral de Marinha e Portos, Delegação de São Vicente, Cabo Verde.

       Deste grupo fazem parte, entre outros, o Farol Dona Maria Pia, construído em 1881 na cidade da Praia, ilha de Santigado, o Farol D. Luís I, construído em 1882 no ilhéu dos Pássaros, junto à ilha de São Vicente, o Farol Fontes Pereira de Melo na ilha de Santo Antão, inaugurado em 1886, o Farol da Ponta Preta, instituído em 1889 na então vila do Tarrafal e o Farol Rainha Dona Amélia, edificado na ilha de São Vicente no ano de 1894. (8)

       Acrescente-se que no século XIX, também entrou em funcionamento o Farol de Ponta de Lobo, em 1886, na ilha de Santiago e o Farol do Morro Negro, na Boavista, “para satisfazer a necessidade que há muito se fazia sentir de um mínimo de alumiamento na parte leste do Arquipélago” e de mais sete faróis automáticos de médio alcance. (9)

Selos dos Correios de Cabo Verde com a temática faróis

       Constata-se, portanto, que os faróis têm desempenhado um papel relevante no que diz respeito à segurança da navegação nas zonas mais perigosas do arquipélago e identicamente os farolins tornaram os portos seguros, evitando os frequentes naufrágios que se registavam, principalmente nas entradas dos mesmos e nos baixios do espaço arquipelágico, tendo em conta que Cabo Verde funcionava como uma escala quase obrigatória.

       Embora se reconheça que o conjunto de faróis existentes em Cabo Verde constitui no seu todo um importante eixo do complexo apoio à navegação no Atlântico médio, nestes apontamentos debruçaremos apenas sobre os emblemáticos Farol Maria Pia na Praia e Farol Fontes Pereira de Melo em Santo Antão e, em contraponto, o pequeno Farol da Ponta do Lobo em Santiago, também construído no Século XIX.

       No que concerne ao Farol D. Maria Pia (10), foi instalado face à necessidade de balizagem do porto da Praia com um “pharol de luz fixa, systema lenticular de 4ª ordem na ponta da Temerosa da ilha de S.Thiago”, cuja premência a Direcção das Obras Publicas da Província de Cabo Verde justificava nestes termos:

 “Tem a experiência demonstrado e insistente necessidade que há de alumiar a entrada do porto da Praia, cujo movimento marítimo de há muito reclama este benefício. Não cabendo nos recursos da província a collocação simmultanea de pharoes nas duas pontas que formam a bahia do ancoradouro, não podia deixar de merecer preferência a da Temerosa, pois no prolongamento da pequena península deste nome há uma restrinja de rocha, obrigando os navios que demandam o porto da Praia a darem um grande resguardo, sendo portanto este o ponto que primeiro convêm assignalar.” (11)

       O projecto e orçamento deste farol foram aprovados pela Portaria do Governo- Geral nº 36, de 22 de Janeiro do 1880 e a sua construção iniciou-se a 7 de Novembro de 1880, vindo a ser inaugurado em 13 de Junho de 1881, dando-se-lhe a designação de Farol Maria Pia em homenagem a Sua Majestade a Rainha, conforme o ofício nº 31/1881 de 20 de Junho, do Governo-Geral António de Nascimento Sampaio. (12)

       Esclarecia, ainda, aquele governante que se acabava assim de responder a uma necessidade que a navegação nacional e estrangeira instantemente reclamava e que naquele dia teve a satisfação de ver concretizada, assegurando que, igualmente, já estava encomendada a lanterna e torre de ferro para o farol do Ilhéu dos Pássaros, na ilha de S. Vicente, e que vinha empregando os seus esforços e ardente desejo em dotar a província de Cabo Verde de alguns pharoes e phrarolins de porto. (13)

      O Farol D. Maria Pia situa-se na Ilha de Santiago, na Ponta Temerosa, extremo Sul da Cidade da Praia, ponto passível de se observar bem o oceano e poder alertar dos perigos vindos do mar e numa localização que permite o mesmo ser avistado todos os arredores e, por isso, também desempenhar a função de referência para a aproximação na aterragem de aeronaves. (14)

      O seu aparelho óptico encima a torre faroleira, que é uma construção octogonal em alvenaria, com as paredes laterais lisas, salientadas por um remate em forma cornijas contínuas, onde se evidenciam dois finos frisos paralelos. Apresenta várias janelas expostas de modo regular, sendo as duas primeiras ligeiramente maiores e todas rematadas por lintel em arco, talvez enfatizando a estética construtiva dos finais do século XIX.

     Tem 21 metros de altura e o acesso ao alto da torre faz-se por uma escada interior de madeira em caracol, que conduz a um varandim de ferro suportado por uma cornija e termina numa cúpula, também de forma octogonal e estruturada em metal, com o pináculo arredondado rematado pelos quatro pontos cardiais. As paredes laterais daquela são formadas por uma complexa protecção de ferro e vidro, visando a respectiva preservação, tendo no seu interior um candeeiro composto por lentes e a lâmpada, com o alcance de 15 milhas náuticas, operando actualmente à base de energia eléctrica, pois antes funcionava a gás.

      O acesso ao complexo faz-se por uma porta no muro de resguardo e possui dois tipos de anexos, sendo o primeiro coberto de betão, incorporado na estrutura da própria torre e o segundo logo à entrada, constituído por duas construções cobertas a duas águas com telha marselhesa e servem de residência ao faroleiro, como forma de garantir uma presença permanente por o farol ficar um tanto isolado.

Farol D. Maria Pia, Praia – Santiago
Placas existentes na entrada do Farol D. Maria Pia

      Entrementes, com a evolução da navegação a vapor se destacou a relevância internacional do Porto Grande em S. Vicente, pois se transformou numa importante escala para os barcos que cruzavam o Atlântico, levando à necessidade da colocação de faróis visando facilitar as actividades náuticas, nomeadamente o eixo envolvendo S. Vicente e Santo Antão. (15)

      Para tanto e reconhecido que a embocadura leste do canal que separa as duas ilhas era muito importante para a navegação transatlântica, se tornava indispensável a colocação de um farol na ilha de Santo Antão, em complemento do já instalado no Ilhéu dos Pássaros, que passou a sinalizar a entrada do Porto Grande.

      Para resolver a situação foi edificado o  Farol de Fontes Pereira de Mello (16), também conhecido por  Farol de Boi, designação que lhe advém da proximidade ao ilhéu com este nome, pois localiza-se na ponta nordeste da ilha de Santo Antão, junto à povoação Janela e a cerca de 10 km a Sudeste cidade das Pombas. (17)

Mandado construir por Portaria Régia de 2 de Abril de 1884, no reinado de D. Luiz I, sendo Ministro da Marinha o conselheiro Manoel Pinheiro Chagas e Governador-Geral da Província de Cabo Verde o Conselheiro João Pães de Vasconcelos, conforme consta da placa toponímica aí afixada, o Farol Fontes Pereira de Melo entrou em funcionamento dois anos depois, a 15 de Maio de 1886.

      Durante mais de um século, com a sua potente lanterna, cuja fonte de luz do aparelho lenticular era formada por um candeeiro de 4 torcidas alimentadas a petróleo e movido por um complexo mecanismo rotativo constituído por cabos, roldanas e rodas dentadas que funcionava a manivela, com um alcance de cerca de 27 milhas, o “Farol de Boi” desempenhou um importante papelcomo um instrumento de orientação marítima, principalmente à navegação que demandava o Porto Grande de S. Vicente.

      Apesar do estado de degradação em que se encontra actualmente, o Farol Fontes Pereira de Mello ainda consegue mostrar sinais da sua passada grandiosidade monumental, nomeadamente a torre de 11 metros de alturaem alvenaria branca rebocada, com planta octogonal concêntrica e cada um dos lados com 2 metros na base, que se vão comprimindo à medida que atingem o topo. Alberga no seu interior uma escadaria espiralada em torno de uma coluna metálica construída em ferro fundido, que parte da respectiva porta com lintel, encimada por duas janelas de volta perfeita.

     A separar a torre da lanterna, há uma cornija em cantaria, na qual se fixa uma balaustrada de ferro forjado, encimada pela cornija e uma plataforma metálica. Na parte superior situa-se a lanterna propriamente dita, instalada num habitáculo de 4,5 metros envidraçado com placas de grande espessura. Na base dessa lanterna está localizado o mecanismo que proporciona o movimento de rotação do aparelho com os cristais das lentes, completando o conjunto uma cúpula circular em chapa de cobre, coroada por um pináculo com os pontos cardeais e o respectivo cata-vento dançando ao sabor das brisas oceânicas.

     Segundo o Aviso aos Navegantes nº 32, datado de 11 de Fevereiro de 1886:

“O aparelho iluminador é de segunda ordem, com sistema lenticular de rotação. A luz iluminando todas as partes do horizonte é branca e de clarões, que se sucedem de minuto em minuto, e durante este intervalo, a luz, ainda que com menor intensidade, aparece sempre. O alcance correspondente aos clarões é de 27 milhas e o da luz permanente é de 16,2.” (18)

     No espaço do farol existe, em anexo, um edifício térreo de planta rectangular simples e com a fachada virada para a plataforma fronteira. O corpo principal é construído em alvenaria de pedra rebocada e pintada de branco, com cobertura a quatro águas em telha marselhesa. Possui uma porta ao centro e duas janelas de cada lado, que apresentam uma pequena moldura saliente rematadas por arcos de asa de cesto e ainda uma cornija que percorre todo o perímetro da casa, que servia de residência ao faroleiro e respectiva família. Registe-se que os primeiros faroleiros colocados no Farol Fontes Pereira de Mello, em 1886, foram Vicente António de Lima Melo e o Faustino Bans.

      Desactivado há algum tempo, o outrora importante instrumento de navegação atlântica hoje não passa de uma estrutura em ruínas, devido ao abandono, pois está em acentuada degradação mercê de actos de vandalismo, roubos dos materiais, erosões marítima e eólica. Do antigo Farol António Maria de Fontes Pereira de Mello sobram actualmente apenas escombros e muros mal seguros, cuja imponência permanece, todavia, na memória das gentes mais antigas da região.

Farol Fontes Pereira de Mello
Placa existente no Farol Fontes Pereira de Mello

      Relativamente ao Farol da Ponta do Lobo, situa-se no eixo litorâneo sul/sudeste da ilha de Santiago, na localidade Vale da Custa, concelho de São Domingo, freguesia de Nossa Senhora da Luz (19). Referenciada desde 1572, esta freguesia está ligada à primitiva Capitania Norte, antiga circunscrição territorial que tinha como sede Alcatrazes, onde existem ruínas da Igreja de Nossa senhora da Luz, um dos primeiros espaços sacros de Cabo Verde e por isso um lugar de memória.

      Dado a ponta do Lobo ser uma língua rochosa em cujo extremo existem pedregulhos de coloração escura rasos com a água e se prolonga por uma restinga quase submersa que dá origem à linha de rebentação, antecedendo o actual farol, existiu um farolim que começou a funcionar em 1 de Janeiro de 1886, no qual foram mais tarde introduzidas algumas modificações: “ Inicialmente o farol foi colocado na empena da cabana do faroleiro, passando em 1954 para uma armação de ferro próxima, e em 1957 para a actual torre quadrangular em alvenaria”. (20)

      Possuía luz fixa que iluminava 210º 30´do horizonte, visível á distância de sete a oito milhas. Estava colocado na parte exterior duma casa de alvenaria de forma rectangular, pintada de branco, que servia de alojamento ao faroleiro. A altura do plano focal sobre o terreno era de 2 m, 20 e a altitude sobre o nível do mar de I0 m. (21)

      Actualmente a estrutura do Farol da Ponta do Lobo é constituída por uma torre quadrangular de 9 m de altura, cuja lanterna fica a 17 m de altitude, anexa à casa do faroleiro, mas o conjunto encontra-se totalmente abandonado. Na fachada do edifício de planta rectangular, coberto de chapas de fibrocimento a quatro águas, depara-se com a porta que dá aceso ao interior, mas que está cerrada com blocos. Possui na fachada lateral uma porta e três pequenas janelas e na parte posterior apenas uma janela, todas também tapadas tentando evitar vandalismos, por se encontrar sem faroleiro. Acedendo ao seu interior apresenta-se um corredor que separa a cozinha da antiga sala de jantar e leva aos anexos. O mesmo conduz ainda à sala principal, que comunica com o quarto através de uma porta.

      A torre do farol encima uma empena do edifício principal e o acesso à lanterna faz-se por uma escadaria exterior. Embora esteja desactivado, tinha uma luz da lâmpada de cor branca, semelhante à dos faróis de 6ª ordem, e emitia 4 flashes em cada 15 segundos, mas a respectiva protecção encontra-se solta e em mau estado, totalmente corroída por falta de conservação.        O “Farol de Leste” como é conhecido localmente, servia o pequeno Porto do Lobo que tem a forma de uma concha, cuja estreita abertura é delimitada pela Ponta do Lobo ao Sul e a Ponta Maiada, ao Norte de uma costa constituída por três praias, intervaladas por rochedos, estendendo-se de Sul para Oeste, que são utilizadas por pequenas embarcações de pescadores.

Farol da Ponta do Lobo em Santiago
Lanterna do Farol da Ponta do Lobo

       Interessante de referir, que parte dos faróis de Cabo Verde ostenta nomes de marcantes personalidades portuguesas, como exemplificam o farol Rainha D. Maria Pia (Ponta Temerosa, Praia), farol Rainha D. Amélia (S. Pedro, S. Vicente), Farol D. Luís (Ilhéu dos Pássaros, Mindelo) e o farol Fontes Pereira de Melo (Defronte ao Ilhéu do Boi, Santo Antão).

      Todavia, com desenvolvimento das tecnologias, muitos destes faróis deixaram de desempenhar o seu importante papel e foram votados ao abandono. Conquanto importantes testemunhos das Histórias de Portugal e de Cabo Verde, significativa percentagem dos mesmos se encontram inactivos e vandalizados, apesar do seu interesse cultural, arquitectónico e mesmo prático, pois apesar dos avanços técnico-científicos alguns continuam a prestar relevante apoio à pesca artesanal.(22)

      Trata-se, portanto, de aparelhos ópticos e respectivas estruturas cuja função formal e simbólica atravessou o tempo, pelo que muitos deles possuem elevado valor patrimonial sob ponto de vista dos estilos construtivos e potenciais monumentos históricos, tornando esses espaços detentores de legados e memórias que merecem ser devidamente preservados.

      Acrescente-se, igualmente, a paisagem natural que os envolve, detentora de características ambientais únicas no panorama do arquipelágico, tornando-os potenciais miradouros aprazíveis para os turismos cultural e natural, a partir da respectiva revalorização baseada nos preceitos de qualidade em prol do desenvolvimento sustentável.

                                                                                  João Lopes Filho

                                                          (Professor Titular da Universidade de Cabo Verde)

Notas

1 – OLIVEIRA, Emanuel Charles de – “Cabo Verde na rota dos naufrágio”, in A Semana nº 5 de 2006, Suplemento sobre a Cidade da Praia.

2 – SAMPAIO, António Nascimento Pereira, Iluminação e Balizagem no Arquipélago de Cabo Verde, Lisboa, Typografia Portuguesa, 1890, p.6.

3 – Governo-Geral da Província de Cabo Verde, [Oficio nº 227] 1879 Abril 15, Cidade da Praia (a) Ministro e Secretario d´Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Portugal, SEMU-DGU, 3ª Repartição – Cabo Verde, Cx. 164.

4 – OLIVEIRA, Emanuel Charles de – “Fontes Pereira de Melo, a memória que precisa ser preservada”, in A Semana nº 5 de 2006, Suplemento sobre a Cidade da Praia, p. 28.

5 – COSTA, Júlio José Marques da – “Farolagem e balizagem no Arquipélago de Cabo Verde”, in Anais do Clube Militar Naval nº 20, Lisboa, 1890, pp. 591-595.

6 VASCONCELOS, Ernesto de – Les Phares des Colonies Portugaises, Exposição Universal de Paris, Paris, 1900, pp. 6-7.

7 – RODEIA, Joaquim Afonso Serra – Cabo Verde: Plano de Farolagem do Arquipélago, Vol. I, Lisboa, Ministério da Marinha, pp. 3-4.

8 – VASCONCELOS, Ernesto de – Les Phares des Colonies Portugaises, Exposição Universal de Paris, Paris, 1900, pp. 6-7.

9 – RODEIA, Joaquim Afonso Serra – Cabo Verde: Plano de Farolagem do Arquipélago, Vol. I, Lisboa, Ministério da Marinha, 1886, pp. 3-4.

10 – A Rainha D. Maria Pia (1847-1911), era filha da arquiduquesa Maria Adelaide de Áustria e de Victor Manuel do Piemonte, rei da Sicília (1849) e de Itália, depois da unificação em 1869. Casou com 15 anos de idade com o rei de Portugal, D. Luiz I.

11 – Direcção das Obras Públicas da Província de Cabo Verde, Série de 1880 [Oficio nº 299] 1880 Maio 18, Ilha de Santiago [a] Ministro e Secretario d´Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, 19f. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Portugal, SEMU-DGU, 3ª Repartição – Cabo Verde, Cx. 164.

12 – Governo-Geral da Província de Cabo Verde, Série de 1881 [Oficio nº 311] 1881 Junho 20, [a] Ministro e Secretario D´Estado da Marinha dos Negócios da Marinha e Ultramar, 1891, 3f., Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Portugal, SEMU-DGU, 3ª Repartição – Cabo Verde, Cx. 164.

13 – Anexo nº 9 – Oficio nº 311/1881 do Governo-geral da Província de Cabo Verde, Série de 1881, dirigido ao Ministro e Secretario D´Estado da Marinha dos Negócios da Marinha e Ultramar.

14 – As coordenadas deste farol são 14° 54′ N 23° 30′ W, altitude 25 metros, o alcance de 15 milhas náuticas e as características da luz Fl (2) W 6s.

15 – Direcção das Obras Publicas da Província de Cabo Verde, 1878 Outubro 1, Cidade da Praia [a] Sua Majestade, 86f., Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Portugal, SEMU-DGU, 3ª Repartição – Cabo Verde, Cx. 163.

16 -António Maria de Fontes Pereira de Mellonasceu em Lisboa a 8 de Setembro de 1819, onde faleceu em  22 de Janeiro de 1887. Filho de João de Fontes Pereira de Melo que foi Governador de Cabo Verde por duas vezes, acompanhou o pai como seu ajudante, e seria depois eleito deputado pelas ilhas. Foi um dos principais políticos portugueses da segunda metade do Século XIX, em que se ocupou de vários ministérios e ainda a Presidência do Conselho de Ministros. A sua importante promoção das obras públicas ficou conhecida como o Fontismo.

17 – As coordenadas geográficas deste farol são aproximadamente: Latitude – 17º 6’ 50’’ N, Longitude – 24º 29’ 15’’ W de Greenwich, e as característica luminosa do farol é de luz fixa com um relâmpago de cada 58 segundos.

18 – SAMPAIO, António de Nascimento Pereira – Iluminação e Balizagem no Arquipélago de Cabo Verde, Lisboa, Typografia Portuguesa, 1890, pp. 17-18.

19 – As suas coordenadas são: latitude  14 ° 59´ 25 ´´(14,9833 °)  Norte; longitude  23 ° 25 ‘ 40´´ (23,4333 °) Oeste.

20 – RODEIA, Joaquim Afonso – Cabo Verde – plano de farolagem do arquipélago – elementos técnicos, 4º volume,1973, p. 14.

21 – BARCELLOS, José C. de Senna – Roteiro de Archipelago de Cabo Verde, Lisboa, 1892, p. 28.

22 – “Dos cinco faróis existentes na ilha do Maio, apenas dois estão a funcionar, estando os restantes a aguardarem pela reparação há vários anos, dando lugar a repetidas denúncias sobretudo por parte dos pescadores artesanais, porque devido ao seu não funcionamento, alguns já tiveram o azar de embaterem nas rochas. Sempre que se fazem ao mar, os pescadores navegam com o credo na boca à espera de surpresas que lhes possam surgir a qualquer momento por causa da ausência de pontos de referência, o que lhes deixa envolto numa enorme escuridão navegando à sua sorte” (in Sapo.cv / Inforpress, 19-08-2015).

A Cátedra e o património. O que fazemos com o Património Cultural Imaterial?

por Filipe Themudo Barata

O Património Cultural Imaterial (PCI) é o tema central do trabalho da Cátedra UNESCO. E este património é composto por práticas, formas de ver o mundo e saberes fazer, realidades frágeis com dificuldades em sobreviver na nossa sociedade em permanente mudança. Apesar de isto parecer evidente, é raro que nos documentos de apresentação das nossas actividades sublinhem essa ligação entre o que fazemos e o património que ocupa tanto do nosso tempo.

No final do título da Cátedra, encontra-se uma expressão que tem todo o sentido: “ligando o património” (linking heritage) e é essa que devemos valorizar. O património construído, para ser bem compreendido, tem, na sua base, valores, conhecimentos e formas que nos permitem, de facto, percebê-lo; do mesmo modo, o património natural e as paisagens só são compreendidas quando estudamos as práticas sociais que lhes deram a estrutura que hoje têm. Se quisermos, a compreensão dos outros patrimónios procuramo-la, quase sempre, na sua própria imaterialidade.

Claro que esta situação torna o trabalho mais difícil de descrever e precisar, mas é este esforço que não devemos esquecer.

O problema agrava-se com a generalização da mobilidade no mundo actual: dentro de cada país, dos campos e dos pequenos núcleos urbanos para os grandes centros populacionais, entre países e continentes à procura de empregos e melhores condições de vida e, infelizmente muito comum nos nossos dias, para fugir à prisão e à guerra. Esta mobilidade, voluntária ou não, traz para os destinos finais desses movimentos populacionais efeitos directamente relacionados com o PCI e que importa estudar, dar a conhecer e participar na abertura de soluções.

Nos locais em que são recebidos, sempre percebidos como um encargo, a primeira perda é a da auto-estima, já que, na grande cidade, se perde importância individual e colectiva e não se valoriza o saber fazer de cada um. Depois percebe-se a dificuldade de integração, muitas vezes porque o recém-chegado tem dificuldades em compreender a sociedade a que chegou e, quase sempre, porque quem acolher não tem, porque não sabe ou não quer, políticas de integração e de valorização do saber de quem chega.

Acresce que nas actuais sociedades de massas, a pressão para a uniformização, para a prevalência das línguas e das culturas dominantes, cria ou ajuda a criar fenómenos de guetização e marginalidade no mundo urbano, que se tornam cada vez maiores (os guetos e as cidades). É nesta difícil linha de fronteira que vive a nossa Cátedra UNESCO. Claro que é um trabalho duro; na cidade, a representação política dos grupos faz-se pelo somatório dos votos de cada indivíduo, pelo que se perde a ideia de pertença ao grupo base. Por outro lado, essa mesma cidade, também é o lugar privilegiado da inovação e da criatividade.

Este documento nasce do processo de avaliação da Cátedra UNESCO e das observações que nos foram feitas. Absorvidos no nosso trabalho regular, percebemos muito bem a ligação do que fazemos com o PCI. Reconhecemos que, ao lidar com os problemas das colecções museológicas e dos próprios museus, estamos no meio da discussão sobre o enquadramento institucional do património imaterial; outras vezes, tratando com problemas de desenvolvimento urbano, defendemos e discutimos, ora o significado dos sítios, ora as formas mais razoáveis de organizar políticas de integração urbana. Quando nos viramos para o turismo no quadro do património, estamos tantas vezes à procura de caminhos para, através da utilização do PCI como um recurso que é, o poder preservar e valorizar. Nós sabemos isso, mas nem sempre isso é perceptível para todos os que acompanham o nosso trabalho, incluindo técnicos da UNESCO. É muito importante sublinhar a coerência do trabalho que fazemos; entre membros da equipa e colaboradores já somos cerca de 30 pessoas; é fácil dispersarmo-nos e ajudarmos a criar uma sensação de caos que não existe. Mas a Cátedra é um local de encontro. Por isso, aqui fica uma recomendação “constitucional”: em todas as actividades que organizamos ou produzimos, devemos incluir uma explicação, curta ou longa, sobre a sua ligação ao Património Cultural Imaterial.