Entrevista com Ricardo Fonseca

Por Sónia Bombico, em 25 de novembro de 2021. Estremoz, Portugal.

Entrevista com Ricardo Fonseca, artesão que se dedica à “Produção de Figurado em Barro de Estremoz“, vulgarmente conhecida como “Bonecos de Estremoz”. Uma prática inscrita, em 2017, pela UNESCO na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade

Como é que começou a fazer “Bonecos de Estremoz”? É uma tradição familiar?

Aprendi com as minhas tias e comecei ainda em criança, nas férias da escola. Com o passar dos anos foi crescendo o gosto pela arte e decidi fazer disto profissão.

As minhas tias [Irmãs Flores] aprenderam ainda muito novas, por necessidade de trabalharem, com a “mestra” Sabina Santos, e quando essa senhora deixou de trabalhar, as minhas tias continuaram a trabalhar sozinhas por conta própria.

Foi frequentando o atelier delas que eu comecei. Hoje trabalhar aqui com elas.

Tem ideia de quantas pessoas, atualmente, se dedicam ao Figurado em Barro de Estremoz?

Esta resposta é muito relativa, porque agora há pessoas a fazerem um tipo de figurado que eu pessoalmente não considero “Boneco de Estremoz”; porque apesar de a técnica de base ser a mesma, há muita inovação.

Há 3 ou 4 pessoas que fizeram uma ação de formação, há cerca de 2 anos, e começaram a trabalhar, alguns até a tempo inteiro, mas é um tipo de trabalho que eu considero diferente.

A fazer os “bonecos” tradicionais há umas 4 ou 5 pessoas, apenas.

Pode descrever brevemente o processo e as técnicas que usa?

Qualquer figura começa sempre pelo corpo (cabeça, trombo e membros), e depois a roupa é moldada em cima, ou seja, é como se o boneco fosse vestido em barro.

Tem uma fase de secagem e depois é cozido. Nós, aqui, cozemos à temperatura de 930 ºC, durante cerca de 9 horas, porque a temperatura tem de subir gradualmente para não haver “explosão” do corpo da figura.

Depois o boneco é pintado com tintas de base aquosa, algumas delas feitas com pigmentos, água e cola branca. E o acabamento final é o verniz também aquoso, mas antigamente não era.   

Estes processos sofreram alterações ou evoluções desde o tempo em que as gerações anteriores à sua trabalhavam?

Sim houve evoluções, consequência da evolução dos materiais que utilizamos. Por exemplo, hoje em dia, não se podem usar certos produtos sintéticos que se usavam há alguns anos, por causa da toxicidade. Certas tintas de óleo ou vernizes sintéticos foram proibidos. Hoje em dia, somos obrigados a utilizar produtos de base aquosa.

E essas alterações trouxeram algum constrangimento? Ou alguma necessidade de adaptação da técnica?

Não, não! A estética não foi alterada e até tem vantagens, não há cheiros e é mais sustentável.   

Tem procurado introduzir algumas inovações no processo tradicional? Se sim, quais?

Sim! Inovação no sentido de fazer figuras novas. Porque, hoje em dia, temos de ir um pouco ao encontro dos pedidos dos clientes; e os clientes pedem muitas peças novas, principalmente figuras religiosas. E nós, dentro daquilo que podemos fazer, fazemos.

Mas sempre explicando ao cliente que a figura terá as características de um “boneco de Estremoz”. Não vamos fazer, por exemplo, uma figura mais escultórica, porque aí já vamos ter de lhe chamar outra coisa. O “Boneco de Estremoz” é uma arte popular e tem características mais rústicas, e tudo o que nós fazemos é dentro dessa estética.

Mas fazemos muitas figuras novas, sim!

Especialmente figuras religiosas?

Sim, mas há outro tipo de figuras. Posso dar-lhe um exemplo: Há pessoas que pedem figuras de profissões, porque querem oferecer a um amigo ou familiar, a figura de um médico, um advogado, um arquiteto…

Já existiam nas profissões tradicionais no figurado de Estremoz e agora também existem as profissões modernas…

Podemos dizer que é uma arte que vai evoluindo a par da evolução da própria sociedade?

Exatamente! Até porque esta arte sempre retratou muito a sociedade.  

O barro é uma matéria-prima essencial. O barro que usa é de origem local ou regional? Sente alguma dificuldade em adquiri-lo?

Dificuldade em adquirir não! Mas barro da região já não temos há muito tempo, porque já não há quem o produza e já não existem olarias em Estremoz. Por isso, temos de comprar fora.

E desde há quanto tempo é que não têm acesso a barro de origem local?

Provavelmente, desde os anos 1990.

A inclusão da “Produção de Figurado em Barro de Estremoz” na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da UNESCO teve algum impacto na sua atividade?

Teve, teve! No sentido de haver mais procura. Os “bonecos” já eram muito populares, até no estrangeiro, e sempre tiveram muita procura; mas a candidatura foi divulgada a nível mundial, é claro que a procura aumentou bastante, principalmente logo imediatamente a seguir à classificação.

A nossa capacidade de resposta é que foi mais difícil, porque o nosso ritmo de trabalho continuou a ser o mesmo.

E teve também algum impacto, não só ao nível da procura e da venda, mas também ao nível da vossa participação em ações de formação, divulgação e salvaguarda? Aumento de visitas ao vosso espaço?

Sim, principalmente visitas de escolas.

E isso parece-lhe algo positivo?

Sim, é bastante positivo! E temos também visitas de grupos de turistas. Há muita procura, mesmo!

Ricardo Fonseca.

Os “Bonecos de Estremoz” são uma fonte de rendimento para si? É possível viver desta arte?

Sim, sim! É a minha profissão!

Como é que imagina o seu futuro na “Produção de Figurado em Barro de Estremoz”?

Eu acho que…não quero dizer que vá desaparecer por completo, mas acho que a tendência das novas gerações é para alterar o tradicional. Penso que vai perder um pouco a essência, daquilo que era há 100 ou 200 anos.  

E acha que isso é negativo ou que fará parte da evolução da própria arte?

Eu acho que é mau!

Está disposto a passar os segredos da arte a alguém? Se sim, a quem?

Sim, a alguém que tenha realmente interesse em aprender e esteja disponível para isso! Mas hoje em dia já não se coloca muito essa questão…

Por causa da candidatura, existe um Plano de Salvaguarda e a Câmara Municipal de Estremoz está a criar um arquivo em vídeo do processo de fabrico de muitas figuras, portanto isso vai ficar para o futuro. Mesmo que esta arte possa morrer, ou esteja em perigo de se extinguir, qualquer pessoa que queira aprender pode sempre recorrer e esse material de registo que vai ficar em arquivo.

O Ricardo antecipou uma pergunta que tinha para lhe fazer a seguir, que é a seguinte: Imaginando que era o último artesão vivo, acha que seria possível capturar as suas técnicas através das novas tecnologias, como o vídeo ou a realidade virtual, para que alguém daqui a 100 anos pudesse aprender? Ou, por exemplo, alguém de uma cultura diferente, numa outra parte do mundo?

Sim, sim, já vai acontecendo! E é uma forma de salvaguardar!

Fazendo de pouco de “advogado do Diabo”, não acha que é essencial na aprendizagem, o elemento humano e pessoal, na passagem de certos pormenores da prática?

Claro! Nunca será a mesma coisa! Falo por experiência própria, eu comecei a trabalhar com 12 ou 13 anos e noto que a minha evolução foi muito lenta. Não aprendi assim em meia dúzia de meses. Também é preciso talento! Mas, acho que se a pessoa tiver algum talento, mesmo só vendo os vídeos pode aprender.

O que é que os “Bonecos de Estremoz” trouxeram à sua vida?

À minha vida…podem-me ter trazido alguma fama, algum prestígio. Para além de ser a minha forma de ganhar a vida.

Acha que a sua história pessoal contribui também para a história desta tradição?

Sim, acho que deixo alguma coisa de mim. Mas eu aqui, às vezes vou mais ao encontro da “história” dos clientes do que da minha propriamente.

E por exemplo, figuras novas que tenha criado, que possam perdurar e que possam também enriquecer a coleção de bonecos?

Sim, algumas ficam. Por exemplo, uma figura que faço muito é a Rainha Santa Isabel. Não existe nenhuma Rainha Santa Isabel antiga nas coleções conhecidas no museu, por exemplo. É uma figura que está muito ligada a Estremoz e que de alguma maneira já se poderá considerar como pertencente à coleção de figuras.      

O que é que mais gosta no seu trabalho?

A fase do trabalho que gosto mais é a modelação. Não gosto tanto de pintar…

Interessa-se pela História dos “Bonecos de Estremoz”?

Sim! E felizmente agora até há bastante informação, por causa da candidatura. Há muita coisa documentada e inclusivamente o diretor do Museu publicou um livro em que fez um apanhado geral da arte e da História do figurado.

Só tenho pena que haja muito pouca informação sobre as figuras alegóricas de Carnaval…

Costuma contribuir de alguma forma para transferir algum desse conhecimento aos visitantes e clientes?

Sim, sugerimos sempre às pessoas a visita ao Museu Municipal de Estremoz, onde podem ver as coleções de bonecos, com figuras desde o século XVIII até à atualidade.

E sente-se envolvido no trabalho que tem vindo a ser desenvolvido, em termos institucionais, com vista à valorização e salvaguarda do figurado?

Sim, sim! Participamos sempre ativamente em tudo o que nos propõem, desde o próprio processo de preparação da candidatura. E temos participado, também, na realização dos vídeos de que lhe falei.

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Arquivos da Cidade

Arquivos de Cidades, é um trabalho de investigação iniciado em 2019 e que tem como objectivo a criação de uma série de publicações sobre arquivos relativos a património construído em cidades de origem portuguesa.

O projecto procura criar uma interpretação contemporânea e mais inclusiva sobre esse património mas também no domínio do património imaterial, tendo como contexto inicial de investigação o Acervo do Arquivo do Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) e anteriormente o trabalho relativo à publicação Património de Influência Portuguesa no Mundo ( FCG). A este Arquivo juntam-se outros acervos nacionais e internacionais procurando desse modo a construção de uma diferente leitura sobre um legado que é hoje comum. 

Arquivos de Cidades convida fotógrafos de cada país a fotografar a relação desse património com as dinâmicas atuais da cidade e espaços onde está inserido. Desse modo deseja-se tornar a história um palco vivo e táctil a todos os que o vivem mas que também o interpretam.

A coleção Arquivos de Cidades articula-se em 4 volumes, cada um dedicado a quatro monografias de cidades, sendo que em cada ano será lançado um volume bilingue (português e francês) e com tradução para árabe dos textos mais significativos. 

A publicação representa igualmente um processo de trabalho, em que as reflexões de cada autor, com a sua linguagem de observação sobre a história, sobre os edifícios e os lugares, participam numa leitura das cidades como organismos de composição arquitetônica, histórica, política, mas também estética e social e onde a fotografia adquire uma renovada importância. 

Arquivos de Cidades não é uma publicação sobre metáforas revivalistas, mas surge antes como uma oportunidade para questionar como essas estruturas edificadas, podem agora convocar uma urgência de requalificação criando também uma nova dimensão de cidadania, mais global, mas também mais próxima e unificadora. 

Apoiam desde já este projecto, o CIDEHUS, a Cátedra UNESCO em Património Material e Imaterial da Universidade de Évora e a Cátedra University City of Macau, também da Universidade de Évora. A coleção será publicada pela editora Caleidoscópio e conta com o apoio institucional da Fundação Calouste Gulbenkian.

A equipe é constituída pelos docentes, João Rocha, Filipe Themudo Barata e a bolseira Francisca Queiroz

Património Cultural e Sustentabilidade. Uma relação nem sempre fácil – nova publicação

Muitos falam em património cultural e na sua sustentabilidade. De facto, este tema, apesar de parecer fácil no seu tratamento, quase evidente dir-se-ia, comporta uma complexidade, que aqui se pretende apresentar de uma forma que possa ser por todos compreendida.

O subtítulo aponta para uma questão essencial, ou seja, as relações conflituosas, umas vezes, cooperantes, outras tantas, entre as políticas de sustentabilidade e a conservação, proteção e valorização do património cultural.

Esperam os autores que o livro possa ser útil para todos aqueles que se confrontam com os problemas de saber o que fazer com o seu património cultural; e são muitos. Entre responsáveis municipais e da administração central, especialistas das áreas culturais e económicas, e investigadores, há sempre o desejo de se lhes poder ajudar a encontrar algumas respostas. Mas é verdade que a ideia inicial foi a de apoiar os estudantes que o quiserem consultar.

Barata, F. T., Capelo, S., & Mascarenhas, J. (2021). Património Cultural e Sustentabilidade. Uma relação nem sempre fácil. (F. T. Barata, S. Capelo, & J. M. Mascarenhas, Edits.) Évora: Cátedra UNESCO da Universidade de Évora em “Património Imaterial e Saber Fazer Tradicional”.

O livro encontra-se disponível em PDF aqui